José, patriarca
O Patriarca José e o Vidente de Zimmerwald
Um dos nossos assinantes de Paris escreve o seguinte:

“Lendo o número da Revista Espírita do mês de outubro, reportei-me a uma passagem da Bíblia, que assinala um fato análogo à mediundiade do vidente da floresta de Zimmerwald. Ei-lo:

“Quando os irmãos de José saíram da cidade, e como ainda não haviam caminhado muito, José chamou o intendente de sua casa e lhe disse: Correi atrás dessa gente; parai-os e dizei-lhes: Por que retribuís o bem com o mal? – A taça que roubastes é aquela em que meu Senhor bebe, e da qual se serve para adivinhar. Fizestes uma ação muito má.

“Quando os irmãos de José foram trazidos à sua presença, ele lhes disse:

“Por que agistes assim comigo? Ignorais que ‘ninguém me iguala na ciência de adivinhar as coisas ocultas?’ (Gênesis, 44:15).31

“O gênero de mediunidade que assinalais existia, pois, entre os egípcios e os judeus.”

C.,
Advogado

Com efeito, nada é mais positivo. José possuía a arte de adivinhar, isto é, de ver as coisas ocultas, servindo-se, para isto, de uma taça de beber, como o vidente de Zimmerwald se serve de seu copo. Se a mediunidade é uma faculdade demoníaca, eis um dos personagens mais venerados da antiguidade sacra convicto de agir pelo demônio. Se agisse por Deus, e os nossos médiuns pelo demônio, então o demônio faz o mesmo que Deus e, por conseguinte, o iguala em poder. Admiram-se de ver homens graves sustentarem semelhante tese, que aniquila sua própria doutrina.

31 N. do T.: Allan Kardec serviu-se, em todas as suas obras, da tradução de Lemaître de Sacy, até hoje a versão francesa mais importante da Bíblia e uma das mais confiáveis do planeta. No Brasil, as versões protestantes mais recentes, sobretudo as ditas “atualizadas” de João Ferreira de Almeida, nem sempre têm se mantido fiéis aos trechos originais, notadamente quando suprimem, adaptam ou modificam palavras e expressões que possam confirmar os ensinamentos espíritas. O versículo acima, do Gênesis de Moisés, mereceu a seguinte versão de Almeida: “Que é isso que fizestes? Não sabíeis como eu que tal homem é capaz de adivinhar?” Assim descaracterizado, o versículo perde muito de sua força. No caso, é da mediunidade que ele trata.

O Espiritismo, pois, nem descobriu, nem inventou os médiuns, mas descobriu as leis da mediundiade, e a explica. Assim, é a verdadeira chave para a compreensão do Antigo e do Novo Testamentos, onde abundam os fatos deste gênero. Foi por falta dessa chave que se fizeram tantos comentários contraditórios, que nada explicam. A incredulidade ia crescendo incessantemente na direção desses fatos e invadia a própria Igreja. Doravante serão admitidos como fenômenos naturais, pois se reproduzem em nossos dias por leis conhecidas. Temos, assim, razão de dizer que o Espiritismo é uma ciência positiva, que destrói os últimos vestígios do maravilhoso.

Suponhamos que se tivessem perdido os livros dos Antigos, que nos explicam a teogonia pagã ou mitológica: compreender-se-ia hoje o sentido das inumeráveis inscrições que se descobrem diariamente, e que se referem mais ou menos diretamente a essas crenças? Compreender-se-iam o destino, os motivos de estrutura da maioria dos monumentos, cujos restos contemplamos? Saber-se-ia o que representa a maior parte das estátuas e baixos-relevos? Não, certamente. Sem o conhecimento da mitologia, todas as coisas para nós seriam letra morta, como a escritura cuneiforme e os hieróglifos egípcios. A mitologia é, pois, a chave com a ajuda tal qual reconstruiremos a história do passado, por meio de um fragmento de pedra, como Cuvier, com um osso, reconstruía um animal antidiluviano. Porque já não cremos nas fábulas das divindades pagãs, devemos negligenciar ou desprezar a mitologia? Quem emitisse tal pensamento seria tratado de bárbaro.

Pois bem! o Espiritismo, como crença na existência e na manifestação das almas, e como meio de com elas entreter-se; o magnetismo como meio de cura; e o sonambulismo, assim como a dupla vista, eram muito espalhados na antiguidade e se misturaram a todas as teogonias, mesmo à teogonia judaica, e mais tarde à cristã; aí é feita alusão a uma porção de monumentos e inscrições que nos restam. Abarcando ao mesmo tempo o magnetismo e o sonambulismo, o Espiritismo é um farol para a Arqueologia e para o estudo da antiguidade. Estamos mesmo convencidos de que é uma fonte fecunda para a compreensão dos hieróglifos, porque essas crenças eram muito espalhadas no Egito, e seu estudo fazia parte dos mistérios ocultos ao vulgo. Eis alguns fatos em apoio dessa asserção.

Um de nossos amigos, sábio arqueólogo que reside na África, e que é, ao mesmo tempo, um espírita esclarecido, há alguns anos encontrou nos arredores de Sétif uma inscrição tumular, cujo sentido era absolutamente ininteligível sem o conhecimento do Espiritismo.

Lembramo-nos de ter visto no Louvre, há bastante tempo, uma pintura egípcia, representando um indivíduo deitado e adormecido, e um outro de pé, com os braços e os dedos dirigidos para o primeiro, sobre o qual fixava o olhar, na atitude exata de um homem que desse passes magnéticos. Dir-se-ia um desenho calcado na pequena vinheta que o Sr. barão du Potet punha outrora no frontispício de seu Journal du Magnétisme. Para qualquer magnetizador, não havia o menor equívoco quanto ao tema desse quadro; para quem quer que não tivesse conhecido o magnetismo, não fazia sentido. Só o fato provaria, se não houvesse uma porção de outros, que os antigos egípcios sabiam magnetizar, e que se entregavam ao magnetismo mais ou menos como nós. Então isto fazia parte de seus costumes, já que se achava consagrado num monumento público. Sem o magnetismo moderno, que nos dá a chave de certas alegorias, não o saberíamos.

Uma outra pintura egípcia, igualmente no Louvre, representava uma múmia de pé, envolvida por ataduras; um corpo da mesma forma e tamanho, mas sem faixas, destacava-se pela metade, como se saísse da múmia, e um outro indivíduo, posto à frente, parecia atraí-lo a si. Então não conhecíamos o Espiritismo e nos perguntávamos o que aquilo podia significar.

Hoje é claro que essa pintura alegórica representa a alma separando-se do corpo, conservando a aparência humana, e cujo desprendimento é facilitado pela ação de outra pessoa encarnada ou desencarnada, exatamente como nos ensina o Espiritismo.

Não creiais no Espiritismo, se vo-lo apraz; admiti que seja uma quimera: ninguém vo-lo impõe; estudai-o como estudais a mitologia, a título de simples ensinamento, mesmo rindo da credulidade humana, e vereis que horizontes ele vos abrirá, por pouco sério que sejais.
R.E. , novembro de 1865, p. 463